Por Claudia Godoy de Havana, Cuba
Quando cheguei ao Ilê, ou Casa de Santo, em Santiago de Cuba, olhei ao redor e percebi que os seguidores da santeria aqui fazem parte de uma forte comunidade. Todos parecem se sentir parte da mesma família, apesar de serem diferentes. Uma confiança profunda norteia a vida dessa gente que aparenta ter muita convicção na cultura que possui. Sentada, sozinha, no meio da praça, uma menina ensaia tranquilamente os toques de um tambor enorme. A música que ela produz é sagrada e transmite a história daquele povo.
Posso ver pela janela do Ilê que ninguém ali parece ter medo de nada. Confiança, guardem esta palavra. Um furacão chegava a Cuba naquele dia. Já escurecia e as folhas das árvores tinham aquele balé característico da brisa do Caribe.
O pai de Juan Martén Portuondo, conhecido como Guancho, o chefe do Ilê, tinha morrido no dia anterior. Ele também coordena a Associação Iorubá na região, mas tivemos que cancelar a entrevista por causa do enterro. Fiquei consternada ao ver Guancho chegar tão triste com a partida do pai. Ele estava vestido com uma bata no estilo africano e calça brancas. Colares coloridos e um chapéu verde e amarelo completavam o traje. Uma homenagem ao Brasil? Sim, com certeza.
Resolvi não fazer perguntas para não deixá-lo ainda mais cansado, e passei a observar todos os detalhes daquele lugar mágico que eu tinha a oportunidade única de conhecer. Era grande a quantidade de informação. Os símbolos e as simpatias, oferendas e mandingas chegam a confundir a mente.
Uma motocicleta elétrica bem no centro da sala pequena do Ilê quebrava um pouco da magia, era como um objeto que chamava para a realidade do mundo humano.
Um senhor entra na sala puxando um filhotinho todo preto por uma corda. É um cabrito balindo baixinho como fazem os bichinhos desta idade. Meu coração dispara. Sei que há sacrifícios de animais pretos para Exú nesta religião. Mas lembro também que comemos carne quase todos os dias de animais que também foram sacrificados para nos alimentar. Isso me tranquiliza um pouco. Um pouco. O filhote fica balindo de dentro da casa e começo a querer chorar. De repente o filhote pára. Minha imaginação vai a mil e procuro olhar para a rua e observar a rotina das pessoas através das portas abertas e iluminadas com lâmpadas fracas de luz amarela. É época de furacão em Cuba e uma chuva ameaça cair. Observo como o vento em Havana havia mudado depois da chegada do furacão Milton. Apesar disso, a população cubana enfrenta os desafios com perseverança. Eles sabem o que fazer. A confiança está em quase todos os olhos que vejo.
Originários de Nigéria, Benin e Togo, os iorubás chegaram a Cuba como um povo escravizado. Assim como no Brasil só os mais fortes sobreviveram. As viagens transatlânticas eram longas e perigosas. Essa força física é muito intensa em Cuba, eles são muito altos. No Brasil, a religião dos iorubás é o candomblé, e também como em Cuba eles não podiam cultuar suas divindades livremente em terras brasileiras. Por causa dessa proibição, as divindades africanas adotaram os santos católicos para exercerem sua fé disfarçadamente. Em Cuba, a santeria é a religião dos iorubás.
O pátio interno do Ilê noto tartarugas num laguinho de concreto onde a água muito limpa brilha com a luz discreta do pátio. Eles acreditam que tartarugas são capazes de carregar energia ruim para a água. Em minha casa tinha tartaruga quando eu era criança. Desconheço se havia alguma intenção mágica de minha família com as tartarugas da minha infância. Nunca ninguém havia me falado nada. Aqui, um altar reúne elementos considerados mágicos pelos iorubás. É diante deste altar que Guancho inicia um canto junto com os outros santeros que vestiam roupas comuns do dia a dia. A força vocal deles é fantástica, eles poderiam cantar ópera se quisessem, fico pensando. Além disso, são muito jovens, de uma geração que transmite força e fé. Guancho é seguido por um grupo grande de homens que o auxiliam na organização dos rituais. Só vi uma mulher no illê, ela estava toda vestida de branco e desapareceu logo no início. Só deu tempo de fazer uma foto dela. Usava um vestido muito branco com turbante. Era linda e alta. Ela tinha a confiança de uma ialorixá, como é chamada a mãe de santo, mas estava triste e com a pele rosada de alguém que havia chorado.
Guancho e os seus ajudantes entoam mais cânticos que parecem repetir mantras. Se o objetivo era encantar, conseguiram.
Sou chamada para a parte interna da casa e encontro um altar com luzes piscando. Diversos objetos fantásticos têm a função de guardiões e protetores. Um tapete verde e amarelo protege o piso e percebo as cores do meu país também nas cortinas e panos que decoram o altar. O chapéu de Guancho completa o que acredito até hoje ser uma homenagem ao Brasil. Eu não tive coragem de perguntar. Pela sala há também fotos de lideranças cubanas, como Fidel e Raul Castro e do presidente Miguel Díaz-Canel. A devoção aos políticos ocupa quase o mesmo espaço dos santos aqui. Guancho sabe fazer o seu trabalho. Ele esbanja confiança.
Pedem meu celular e, de repente, me vejo num ritual de proteção, talvez de fechamento de corpo, dos iorubás. Guancho começa a fazer uma oração me deixa confusa. Eu não esperava aquilo. O ritual é feito para afastar o mal — seja espiritual, físico ou os dois. Fico de joelhos para o altar verde e amarelo, quase encosto a testa no chão junto com Guancho e seu ajudantes. Meu corpo dói. Recebo várias ordens, numa delas tenho que tomar um gole de rum sem engolir. Se a garantia de proteção for também no sentido físico, estarei protegida contra ataques dos inimigos, sejam eles feitos por facas, armas de fogo ou veneno de cobra. Interpretem como desejam. Mas de fato, depois do ritual me senti mais feliz e confiante. Aquilo tem um grande poder. Confiem.
Como o fechamento de corpo se tornaria um fio condutor que percorre essas duas diferentes tradições religiosas no Brasil? Essa história começou há séculos e continua viva. E estou aqui agora no Ilê cuspindo rum em Guancho e recebendo proteção de um povo que me ofereceu amor sem que eu pedisse. Confiança. Guardem esta palavra.
Procuro encontrar livros, mas descubro que o sagrado da santeria é o encontro com a fé e a magia. A história que conta o início e suas regras pode ser transmitida oralmente. A força da ancestralidade e devoção é muito forte. Um segredo antigo. Este segredo, no entanto, é aberto e garantiu a sobrevivência da santeria.
Em Cuba e no Brasil os iorubás tiveram que lutar contra a escravidão e perseguição dos colonialistas. E até hoje alguns dizem lutar contra o preconceito, principalmente daqueles que associam a santeria ao demônio. De acordo com o livro “Los Orishas en Cuba”, de Arostegui Natalia, não existe na cultura iorubá a concepção de um ser maligno absoluto, um diabo. Nem mesmo a dicotomia dualista do bem e do mal existia no ideário nagô. Então, Exú não é o diabo como alguns críticos da santeria acreditam. Mesmo porque a entidade foi concebida pelos evangelistas baseados na cultura judaica, por sua vez inspirada na mitologia babilônica e persa. O ser maligno, inimigo de Deus, não existe, portanto. Apesar disso, a ideia da luta eterna entre criação e destruição, manifestada simbolicamente pela contradição entre luz e escuridão, possui força há milênios em praticamente todas as religiões. E o que realmente continua levando dor e treva ao mundo é a crença de que uma só religião é a verdadeira. Os escolhidos por Deus confiam nisso e acreditam que podem tudo, absolutamente tudo, no planeta terra. Confiança. Guardem esta palavra.